O nariz contra a vidraça*
como a paisagem era terrível
mandou se fechassem as janelas
o nariz contra a vidraça e o fla-flu comendo lá fora
genocídios, promessas, plenilúnios
O festim de Nabucodonosor, a vitória dos pó-de-arroz
as dores do pai e os gritos de amor
são agora aquarelas pitorescas
O nariz contra a vidraça
melhor ainda atrás da persiana
ela com seus preciosismos
unhas feitas entre desfiladeiros de livros
barricadas contra o sublime e o medo
Discreta voyeuse
o sofá combinando com o tom das exegeses
a polidez dos móveis, avencas, decassílabos, filmes russos
perífrases sobre paninhos de crochê
e em vez de carne poemas no congelador
Anônima, dizia sempre à manicure
e apesar das mãos que enrugam
as unhas bem curtas e o esmalte claro, por favor
Um dia, o leite derramado na cozinha, saiu
garras vermelhas, bateu à porta do vizinho
* Poema reproduzido do site http://revistamododeusar.blogspot.com/
divulgação

Hilda Machado (1951 - 2007) nasceu no Rio de Janeiro e faleceu em São Paulo. Foi poeta e cineasta. Enquanto viva, foi mais atuante como cineasta e conqusitou premiações importantes. Mas, seu livro de poesias "Nuvens" (Editora 34), publicado em 2017, lhe rendeu o Prêmio Jabuti em 2019